Por Pedro Araújo e João Mateus*
Inicialmente, para melhor compreensão acerca dos reflexos do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) na incidência de Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) em transferência de imóvel a título de integralização de capital de pessoas jurídicas, é importante conhecer dois dispositivos legais:
O primeiro deles é o inciso I do § 2º do artigo 156 da Constituição Federal, que estabelece que não incide ITBI na “transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa transferência de imóveis em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”.
O segundo é o artigo 23 da Lei nº 9.249/1995, que determina que “as pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado”. Ou seja, o valor de transferência do imóvel para a empresa poderá ser o de aquisição (valor histórico-contábil),constante na Declaração de Imposto de Renda, ou poderá ser o atualizado conforme praticadas do mercado imobiliário (valor de mercado),hipótese em que haverá incidência de ganho de capital.
Tais dispositivos de lei, em conjunto, formaram uma prática que, até o primeiro semestre de 2020, era pacífica entre os contribuintes e o fisco municipal: para evitar ganho de capital, e sob o amparo legal, os sócios faziam as transferências de imóveis para pessoas jurídicas pelo valor histórico dos bens e a prefeitura deixava de cobrar o ITBI (sem discussão do valor da transferência realizada),salvo se a empresa desenvolvesse atividades imobiliárias.
Acontece que, em agosto de 2020, a tese geral fixada pelo STF relativa ao Tema 796, estabelecendo que “a imunidade em relação ao Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI),prevista no inciso I do § 2º do artigo 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”, levou a uma mudança de interpretação e aplicação da imunidade do ITBI por parte de algumas prefeituras.
Alguns fiscos municipais passaram a fazer uma avaliação dos imóveis transferidos a título de integralização de capital para cobrar ITBI sobre a diferença entre o valor de mercado e o valor histórico-contábil (adotado pelos sócios visando a não incidência de ganho de capital, conforme dito anteriormente).
Tal postura, no entanto, vem sendo alvo de uma série de críticas. É que, conforme se pode extrair do contexto fático do Recurso Extraordinário 796376, processo que deu origem à tese relativa ao Tema 796, a decisão não estabelece que a diferença entre o valor de mercado e o valor histórico-contábil está sujeita à tributação, mas sim, que a parcela referente ao valor do imóvel, estipulado pelos sócios (histórico-contábil ou de mercado),que não for transferida a título de integralização de capital social, está sujeita ao ITBI.
No caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal, o capital social da empresa autora do processo era de R$ 24.000,00, e foi integralizado mediante bens imóveis avaliados pelos próprios sócios em R$ 802.724,00, sendo que a diferença, de R$ 778.724,00, foi transferida a título de reserva de capital.
A discussão foi iniciada porque o secretário da Fazenda do Município de São João Batista (SC) reconheceu apenas parcialmente a imunidade do ITBI sobre os bens imóveis incorporados ao patrimônio da empresa a título de realização de capital, e exigiu o tributo sobre a diferença entre o valor do capital social e o dos bens transferidos. A empresa então pleiteou judicialmente a declaração de imunidade tributária em relação ao ITBI sobre o valor total dos imóveis transferidos. A sentença inicial foi favorável ao pedido. No entanto, em reexame realizado, o tribunal de origem reformou a sentença, e considerou o entendimento que a imunidade do ITBI incide apenas sobre o valor do imóvel suficiente para a integralização do capital social da empresa. A empresa então interpôs recurso extraordinário, a princípio admitido na instância de origem. O reconhecimento da repercussão geral da matéria pelo Plenário do STF ocorreu em março de 2015.
O ministro Alexandre de Moraes, em seu voto, que foi acompanhado pela maioria dos demais ministros, argumentou no sentido de que a imunidade de ITBI sobre o valor dos imóveis que excederem o valor do capital subscrito, e, portanto, são transferidos para a pessoa jurídica a título de reserva, não encontra amparo no inciso I, do § 2º, do artigo 156 da Constituição, “pois a ressalva sequer tem relação com a hipótese de integralização de capital”.
O ministro apontou que essa extensão interpretativa em termos de imunidades não é aceita pela Suprema Corte por constituir exceção constitucional à capacidade tributária. Assim, entendeu que sobre a diferença do valor dos bens imóveis que superar o valor do capital subscrito a ser integralizado incidirá a tributação pelo ITBI, “pois a imunidade está voltada ao valor destinado à integralização do capital social, que é feita quando os sócios quitam as quotas subscritas.”
Citou ainda que nada impede que os sócios ou os acionistas contribuam com quantia superior ao montante por eles subscrito, e que o contrato social preveja que essa parcela será classificada como reserva de capital, mas que “o que não se admite é que, a pretexto de criar-se uma reserva de capital, pretenda-se imunizar o valor dos imóveis excedente às quotas subscritas, ao arrepio da norma constitucional e em prejuízo ao Fisco municipal”.
Assim, apesar de não termos ainda um entendimento jurisprudencial consolidado quanto à essa postura adotada por algumas prefeituras, é possível recorrer a eventuais decisões do fisco municipal no sentido de cobrar o ITBI sobre a diferença entre o valor de mercado e o valor histórico-contábil adotado pelos sócios na integralização de capital social com bens imóveis.
*Pedro Araújo é advogado tributarista e sócio da Planning
*João Mateus é bacharel em Direito e coordenador do Departamento de Assessoria e Consultoria Societária da Planning